Um botão não é apenas um botão: desenvolvimento de jogos críticos, artísticos, reflexivos e/ou filosóficos

É incomum inserir agradecimentos em um post de blog, mas preciso agradecer a todos os meus estudantes em Hipermídia II, com quem esse debate é aprimorado, que participaram das discussões que geraram algumas destes conceitos e que me trouxeram vários dos exemplos que apresento neste texto.

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Desde que comecei a ministrar a disciplina de Hipermídia II no curso de Design Digital da PUCPR (Curitiba), realizo com os estudantes um projeto na interface entre arte e design, com o desafio de criar obras artísticas que explorem outras possibilidades em Design Digital. Neste ano, tivemos a oitava turma que desenvolve este projeto, que chamo de “Arte & Hipermídia”.

Já passamos por diferentes temas: CiberculturaAuto-reflexão, Vida e Morte, Presença e Cidades; referenciais teóricos: Intervenção (Villém Flusser) e Critical Play (Mary Flanagan); e diferentes ferramentas de trabalho: explorando o HTML no início, algumas instalações interativas e atualmente utilizando o software Construct 2 para desenvolver jogos.

São vários os nomes utilizados para estes tipos de jogos: críticos, artísticos, reflexivos, poéticos e/ou filosóficos (inclusive, criei um tumblr com o nome de Jogos Divergentes para listar vários exemplos, que utilizo como recurso educacional em aula). Os nomes diferem, mas tem como ponto de partida o direcionamento de utilizar games para explorar interações e temáticas divergentes que não costumam ser enfatizadas na grande indústria de games digitaisA proposta não tem nada a ver com não poder ser “mainstream” ou ser seu oposto, mas de utilizar o espaço da arte e hipermídia para experimentar outras possibilidades dos games como artefatos culturais. Na disciplina, jogos são uma estratégia para discutir questões em hipermídia.

Neste projeto, designers digitais exploram o campo da Arte, com suas possibilidades e restrições. No curso das aulas, passamos pelo seguinte:

  • refletir e debater sobre o que é arte e teorias sobre história da arte, tendo que uma obra de arte não é um artefato isolado de seus contextos e movimentos artísticos dialogam entre si, com transformações centrífugas e centrípetas
  • visualizar o papel da crítica de arte na Arte
  • conhecer as provocações da Arte & Tecnologia (de que arte também é tecnologia e de que a história da arte também é uma história das técnicas)
  • visualizar horizontes de artistas e da Arte Digital, como a pixel art, glitch art e gif art, arte cinética, arte generativa, etc.
  • jogar games-arte e explorar a noção de critical play
  • e por fim, um projeto em que cada estudante deve desenvolver uma obra de arte utilizando como material o jogo digital.

O objetivo do projeto não é de criar jogos educacionais nem jogos com finalidade exclusiva de entretenimento. São hipermídias que permitem reflexões, que especulam interrogações sobre o mundo e a vida ou um posicionamento crítico sobre alguma questão. Para auxiliar no desenvolvimento destes jogos, seguem algumas reflexões que organizei a partir da minha experiência com este tipo de projeto, de 2011 até 2015.

 

Dialogar com a tradição dos games e subversão

Games que visam propor reflexões, fazer críticas ou que se propõe a ser obras artísticas, poéticas e/ou filosóficas não conseguem fugir de… ser games. E, para serem percebidos como games, possuirão elementos do que é reconhecido como games.

Indie games aclamados por público e crítica, como Braid, Lost in Shadow ou Fez, trazem mecânicas inovadoras e narrativas diferentes, mas, mesmo assim, são jogos de plataforma com inúmeras mecânicas de jogos de plataforma (bater em NPC’s), com estruturas narrativas típicas de jogos de plataforma (salvar alguém).

Por dialogar com a “tradição”, entendo um cenário amplo do que uma simples funcionalidade: se jogos de plataforma tradicionalmente utilizam-se de “salvar princesas” como proposta narrativa que guia os objetos do personagem do game, então mudar isso de forma radical é dialogar e ao mesmo tempo subverter uma “tradição”. É intervir em uma relação cultural que se estabelece entre o jogo, o jogar e o significado do jogo e do próprio jogar.

Tela do jogo Donkey Kong com personagens Mario e Pauline em posições inversas do original Questionando esteriótipos de gênero: E se Pauline é quem vai salvar o Mario? Esta tela é do jogo (provavelmente um romhacking) no qual um pai inverteu os sprites dos personagens para sua filha poder jogar com a Pauline.

 

Neste sentido, remeto aqui à dialética (inspirada em um conceito de Pelle Ehn) de tradição e transcendência: utilizar-se do que já é típico em um gênero de game (exemplo: atirar balas em jogo de tiro em 1a pessoa) mas transformar o que se espera da utilização usual disso (exemplo: ao invés de atirar balas, atirar cartas, para utilizar um exemplo inspirado nas aulas do meu colega, prof. Artur Mittelbach). Por transcender, espera-se um passo além, que é mudar o significado e como o significado está encaixado na rede de significados de um determinado recurso de jogo.

Jogo da Vida
E se a vida fosse um jogo?

 

Outros jogos apresentam estas subversões:

  •  American Story, A Pitfall Adventure utiliza toda a base do jogo Pitfall do Atari, como metáfora para fazer uma crítica aos planos de saúde norte-americanos).
  • Em Phone Story a ironia se dá em realizar uma crítica à produção e venda de telefones celulares no próprio celular de quem joga, fazendo o próprio celular colocar o jogador para executar as opressões que parecem estar “invisíveis” aos consumidores (o celular diz: “não finja que isso não tem a ver com você”).
  • No Wait, temos um jogo sobre esperar, explorando algo que nenhum jogo propõe como significativo: apenas observar.
  • No jogo Leaderboarder  temos uma dura crítica a como jogos são feitos atualmente, especialmente os multiplayer massivos. Basicamente, o jogo é uma tabela em que pode-se clicar para aumentar um número ou diminuir, e o maior fica acima dos menores, o que pode ser visto como uma crítica aos jogos em que, se forem tirados os gráficos todos, o que resta são pessoas clicando para ter mais força/defesa/vida/magia que as outras, da mesma forma que o leaderboarder.
  • Em The Artist is Present, o jogo quebra a tradição de jogos terem seus “próprios horários” e segue rigidamente princípios do mundo real: o museu de NY do jogo fecha nos mesmos horários que o museu de NY real, fora do jogo (eu fiz uma resenha sobre este jogo, em que o analiso como uma performance) e ao relacionar mundo real e mundo dos games, propõe a visita a um museu de arte como uma experiência pouco estimulante, numa crítica à arte da artista (Marina) que patrocina o próprio jogo.
  • Em Art game, Pippin Barr brinca com o mundo da arte ao utilizar elementos de jogos, como aleatoridade, e o tetris como maneira de produzir obras.
Tela de "The Artist is Present" de Pippin Bar Tela de “The Artist is Present” de Pippin Bar onde o museu aparece fechado, pois o museu de Nova York está fechado naquele momento.

 

Significados: abertura, controle e direcionamento

Se você quer criar um jogo para as pessoas pensarem sobre um tema, ou se você quer trabalhar um conceito em um game, saiba que você nunca irá conseguir garantir (totalmente) isso. A reflexão crítica sobre algo envolve muitos fatores, circunstanciais, históricos, sócio-culturais, etc. O jogador que joga um jogo e a partir do jogo reflete sobre um assunto, o faz porque tem determinado background que faz parte de sua vida singular, e que com o jogo o permite chegar a certa reflexão.

Se quer criar um jogo reflexivo, evite sempre oferecer apenas como opção fazer o que a pessoa não faria. Evita criar um jogo que só tem uma opção e e no final culpar ela por isso (ter feito a única escolha que lhe foi possível). Um exemplo é o Can Your Pet. Jogo de impacto sobre o modo como nossa sociedade lida com os animais, porém, serve mais como exemplo, como brincadeira para dar susto ou pegadinha do que para trazer novos elementos para reflexão

Não subestime os jogadores. Cuide com o final de jogo: será que precisa mesmo dizer a “moral da história”? O problema é que ao explicar demais o significado que você deseja, enquanto autor/a, posiciona este como se fosse único e não deixa margem pra/o jogadora/o interpretar. Você quer que a pessoa pense ou que apenas aceite o que você quer dizer com o jogo? Mas, claro, não deixe também de oferecer recursos de interface / mecânica / narrativa / elementos visuais ou sonoros que permitam expandir significados. Para abrir espaço para reflexão, deixe espaço para que a reflexão se desenvolva. Se for fazer um jogo irônico, ainda mais atenção trabalhe a ironia para não precisar dizer no final “#ironia” -sqn (#not). Do contrário você pode acabar reforçando um significado que você não gostaria de estimular. Lembre-se que, apesar de você não controlar todos os significados do game, você tem o poder, enquanto criador de jogos, de direcionar algumas hierarquias de valores e entendimentos.

Sobre esta questão, em artigo de Camila Wenzel em 2006, a autora aborda jogos como plataforma de ativismo global. Ela realiza uma análise do McDonalds Videogame, jogo que se propõe a ser uma crítica desta rede transnacional de fast-food.

Tela de McDonalds Videogame Tela de McDonalds Videogame em que sugere-se que seja ativado um nutricionista corrupto

 

Em sua pesquisa, Camila Wenzel apresenta um estudo de caso no qual juntou adolescentes para jogar o jogo, sem dizer que se tratava de um jogo ativista e crítico. O que ela observou foi que os adolescentes acharam o jogo bonito e que ensinava a administrar um restaurante, e não exatamente uma paródia irônico e crítica da franquia de restaurantes, como aparentemente o jogo se propõe a ser.

Outra questão sobre controle dos significados é que, apesar de parecer contraditório, a ambiguidade pode ser um ótimo recurso se bem utilizado. O sistema de diálogos entre jogadores de Journey, da thegamecompany, é um ótimo exemplo disso, inclusive servido (contraditoriamente) para evitar usos abusivos entre jogadores.

 

Proponha escolhas significativas

Criar um jogo, em grande parte das vezes, pressupõe que haverá um jogador tomando decisões: uma pessoa escolhendo. Quando uma pessoa faz escolhas no seu dia a dia (fora do jogo) ela tem que lidar com dimensões éticas, morais, valores e consequências. Normalmente, jogos exploram apenas a última (as consequências), mas, mesmo assim, sem grande impacto. Se um jogador faz uma escolha, “morre” no jogo, ele tem outra vida. E isso é bom, afinal, jogos são uma parte importante da vida das pessoas, por explorar um campo lúdico de experimentação e fantasia, sem maiores consequências diretas na vida da pessoa.

Entretanto, um jogo pode ter grande impacto se possibilitar escolhas que envolvam algo mais do que a liberdade da experimentação. No jogo Lose/Lose, por exemplo, toda vez que um jogador destrói um inimigo, um arquivo do computador do jogador é deletado (de verdade). Já no jogo OneChance, de LemmiBeans (O mundo irá acabar em seis dias? Que escolhas vocês fará?) só é possível jogar o jogo uma única vez: após terminar o jogo e ver um dos finais, você não consegue voltar no site e jogar novamente.

Em um outro jogo, Undertale, estilo RPG 8-bit, você encontra inimigos e começa a batalha. Você tem a opção de atacar o “inimigo”, porém, você não precisa. Você também pode interagir com ele (conversando, flertando, imitando etc), pois não necessariamente você precisa lutar com ele, como é comum em jogos de RPG. Se você não atacar ninguém no jogo, isso levará a um jogo diferente daquele que resolver atacar sempre, ou atacar as vezes. E, mais importante, seu modo de jogar diz algo sobre quem você é, pois os seres do jogo vão reagir a seu comportamento.

Stanley Parable é outra referência interessante sobre a questão de escolhas, por ser um jogo que expande as fronteiras da ideia de multilinearidade em games. Durante este jogo, você está em um escritório vazio e um narrador te diz o que fazer. Entretanto, você sempre pode escolher não fazer o que o narrador te diz, o que pode o próprio narrador pode entender como um enfrentamento e não gostar muito.

Em Everyday the same dream, da Molleindustria, propõe-se uma crítica ao trabalho e ao tédio do cotidiano (todo dia o mesmo sonho), apresentando um personagem que se propõe ao suicídio a cada dia. Entretanto, o jogo deixa sempre em aberto uma escolha significativa a ser feita, que é ver a beleza das pequenas coisas, algo que dificilmente um jogador faz ao começar a jogar, por estar ansioso para chegar ao final da fase.

Escolhas significativas podem ser significativas mesmo sem mudar a narrativa de um jogo. Um jogo pode ser linear, mas ter escolhas significativas quando a pessoa tem que tomar decisões que dizem algo sobre ela, ou sobre o que ela pensa. Muitas vezes, jogos multiplayer ou jogos expostos para jogar em público (como feiras ou mostras) conseguem potencializar isso.

Permitir várias escolhas para o jogo (ser multilinear) não faz de um jogo um jogo que tem escolhas significativas. Para exercitar um pouco a ideia de escolhas significativas, experimente o Will you press the button? ou o Either (nem todas as frases são interessantes, mas algumas valem a pena)

Captura de tela do site Will you press the button? Captura de tela do site Will you press the button?

 

Apertar um botão como uma ação simbólica

Ação simbólica é um termo que utilizo para dizer que as ações possíveis com o personagem de um jogo (ou simplesmente, as ações possíveis no jogo) podem ser entendidas como um significado mais amplo.

Um bom exemplo é do jogo …But it was [Yesterday], no qual logo no início, se você for para a direita, bate de frente com uma área escura, como uma grande sombra, e aparecem várias memórias. A única maneira de passar por esta área é apertando o botão para a esquerda e, assim, virando de costas para essa sombra, ação que indica o significado de “virar as coisas para as memórias como uma maneira de superá-las”. Um botão (apertar para a esquerda) com um grande significado.

Tela do jogo ...But That Was [Yesterday] Tela do jogo …But That Was [Yesterday]

Seguem alguns exemplos de ação simbólica. Neste Jogo sobre conceito de dialogismo em Mikhail Bakhtin é preciso jogar com 3 pessoas: o jogo busca mostrar como a verdade é uma construção coletiva, e para ver essa frase 3 jogadores precisam cooperar simultaneamente. Em Braid, o personagem não morre, mas pode voltar no tempo. O voltar no tempo pode ser entendido como voltar atrás no erros que cometeu, que é a base da história do personagem do jogo.

Um ponto importante das ações simbólicas é que por meio delas, sem mostrar textos explicativos (ou mostrar poucos), é possível indicar significados. Neste sentido, uma indicação é, ao invés de colocar um texto dizendo o que se quer dizer, explicar por meio do play (do próprio jogar). Em Long gone, de Marilia Ferreira e Rodrigo Bernardi (estudantes da disciplina de Hipermídia I), a ação simbólica se apresenta na dualidade de controlar dois personagens e as frases corresponderem as ações: a pessoa entende o conceito do jogo não só por ler as frases, mas sente a ideia durante o play. Não são as frases que explicam o jogar, nem o jogar que explicam as frases, ambas se complementam.

Tela do jogo Long gone, em que é preciso discordar Tela do jogo Long gone, em uma fase em que é preciso discordar para passar para a próxima fase

 

Inclusive, a construção dos significado do jogo pode ser potencializada se os itens estabelecerem interrelações. Em Durations, por exemplo,  a ideia de duração é um conceito recursivo em todo o jogo: da tela de seleção dos minigames (para escolher o jogo que se quer jogar, é preciso sentir a duração) até os próprios mini-games (são vários no jogo), que vão desde sentir de 1 segundo de tutoria até passar 100 anos preso na solitária (nunca terminei esse jogo, mas pelo jeito demora cem anos para ver se tem um final).

Até não permitir apertar os botão esperados pode ser uma ação simbólica. No jogo 400 years, por exemplo, você é uma pedra e não pula: sua grande habilidade é… esperar o tempo passar. Ou, ainda, simplesmente não apertar um botão. A maior parte da experiência com games vem dos games mais populares. Assim, não inserir uma mecânica de jogo ou elemento gráfico tipo de jogos daquele tipo, pode ser de muito impacto,  inclusive porque jogadores de jogos-arte esperam poder fazer/testar aquilo que jogos convencionais não permitem. No jogo SOPA PIPA, de LemmiBeans, é apresenta uma crítica ao SOPA/PIPA (proposta norte-americana de limitação/censura à internet de 2012, sendo que o jogo foi feito durante os protestos contra esta) que aborda o tema da liberdade. No game você pode dar um passeio em direção ao mundo seguro de uma “liberdade” guiada ou se ir pela Liberdade que está no desconhecido. Experimentar esta última liberdade é uma experiência altamente simbólica, mas que praticamente não requer apertar muitos botões.

Em um exemplo “ao contrário”, é que quando você estiver criando um jogo de plataforma, você não precisa fazer um personagem que pula. Tradicionalmente, em jogos como Mario ou Megamen, o personagem pula e esta é a principal ação do jogo (pelo menos inicialmente). Mas se você está fazendo um jogo-arte de plataforma na qual pular não desenvolve nada do conceito/reflexão/crítica que você está propondo, então apenas não faça o personagem pular só porque “isso é comum em jogos de plataforma”. Entretanto, se o personagem pula, então utilize isso para dizer algo que componha a narrativa do seu jogo. Pular pode significar superar barreiras, vencer.

Tela do jogo Bound de Eduardo Gamarros No jogo Bound, criado em 2015 pelo estudante Eduardo Gamarros, o andar e o pular são lentos, sendo que não é possível pular alto. Este design pode ser interpretada como a dificuldade de exercer a luta pela própria liberdade, que é o tema do jogo.

 

Outro espaço em podem ser trabalhados os simbolismos é na relação do jogo com seu título. Aqui apresento dois exemplos criados por estudantes da disciplina de Hipermídia II. No jogo Saudade, de Eduardo de Andrade Fernandes, é proposto um paralelismo entre crescer e sentir as perdas que o personagem do jogo sofre a cada fase, e no final se estabelece a relação com o nome do jogo. No mesmo sentido da importância do nome do jogo, temos o jogo Aja, de André Luís Leme Halat, que aborda a questão do preconceito. Nele, você só vence a opressão seguindo a indicação do nome do jogo, o que envolve jogar com os controles teclado/mouse.

 

Referências

Outros tópicos que pretendo escrever e adicionar aqui futuramente:

  • Preparação da narrativa: narrativa pode ser construída com fases, conversas com personagens, opções de escolha, tempos, etc.
  • Composição dos elementos visuais: Estética e games. Gráficos realistas não são necessariamente “mais reais”. Explicar porque tantos jogos indie são em pixel art ou tem elementos mínimos? Como essa pixel art não é a mesmo dos pixels de Atari, NES, etc?